
O Horto Florestal do Rio de Janeiro existe oficialmente no mapa da cidade desde 1875. Antes, contudo, a região já era ocupada por senhores e trabalhadores escravos de um Engenho de açúcar fundado em 1578, chamado Engenho D´El Rey —e que mudou de nome e de sede em 1695, passando a se chamar Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. Já no século XVIII o Horto sediava uma Fazenda de café cuja casa Grande era pioneira no Brasil em seu estilo arquitetônico: O Solar da Imperatriz. O Parque Jardim Botânico foi fundado por D. João VI em 1811 e trouxe a terceira onda populacional da região, composta por trabalhadores escravos daquela grande obra, a terceira oficialmente fundada no local pela Coroa.
A colonização portuguesa no Brasil se afirmou pela lógica do sistema colonial escravista (NOVAIS, 1990) que se estabeleceu a partir da exploração da mão-de-obra de origem africana. Hoje, é sabido e notório na historiografia que onde houve escravidão, houve igualmente resistência. Daí a afirmação da identidade quilombola do lugar. Ademais, no século XIX abolicionista, comprovadamente o Horto era rota de fuga para os escravos resistentes que transitavam pela cidade em busca de abrigo nos Quilombos da Sacopã —na Lagoa Rodrigo de Freitas— e das Camélias —no atual Alto Leblon (SILVA, 2003).
A população do Horto é caracterizada como uma comunidade tradicional porque muitos de seus moradores são enraizados no território desde seus ancestrais escravos e quilombolas. Para pesquisar historicamente a sua identidade, os moradores criaram o Museu do Horto que teve o reconhecimento da Fundação Palmares como lugar de negro e também do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) como Ponto de Memória oficial de sua rede de atuação museológica.
No século XX a região foi palco da industrialização inicial da cidade, com a construção da fábrica de tecidos América Fabril e suas vilas operárias. Lugar de memória da resistência comunista e anarquista da era Vargas. Já nos anos 1960, Juscelino Kubitschek fundou a Escola Municipal Julia Kubitschek para atender à população local e periférica.
Como se percebe, o Horto sempre foi palco da história oficial de nossa cidade. Igualmente, foi lugar do quilombismo histórico nas matas da Freguesia da Gávea, tendo abrigado, perto de 1888, um importante reduto de quilombolas: o mocambo das Margaridas (SILVA, 2003, p. 74), rota de fuga para os Quilombos da Sacopã (na atual Fonte da Saudade) e das Camélias (no atual Alto Leblon). Os moradores guardam essa memória e o Museu do Horto coletou, registrou e veiculou muitas narrativas a respeito dessa identidade quilombola.
Considerando-se que a história se dá em processo e não em um tempo único, importa considerar que a ocupação do Horto Florestal do Rio de Janeiro se deu em distintas ondas populacionais: desde 1575 quando a região abrigou o Engenho D´El Rey; a segunda desde 1785 quando se ergueu na localidade a Casa Grande e a Senzala da Fazenda dos Macacos; em seguida a construção da Fábrica de Pólvora e do Real Horto Botâncio (Jardim Botânico) em 1808 e 1811 respectivamente com a concomitante ocupação do Morro das Margaridas por quilombolas e a construção da Estrada Dona Castorina; desde 1800 e até 1900 (neste período já nasceram moradores cujos descendentes ainda habitam o Horto e cuja documentação assim o comprova), e, em 1910, com o advento das Fábricas de Tecido Carioca e América Fabril e suas vilas operárias numa última grande onda populacional vinda de fora. Portanto, fazem-se necessárias algumas observações sobre a ocupação histórica da população:
1. Sobre as origens do Horto, ainda no início da colonização do Rio de Janeiro, o historiador Maurício Abreu, especialista na urbanização histórica do Rio de Janeiro, evidenciou em sua obra Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700) que no século XVI dois importantes Engenhos de Açúcar foram fundados pela Coroa portuguesa no atual bairro do Jardim Botânico: o Engenho Nossa Senhora da Cabeça, fundado por Mem de Sá na atual Rua Faro, cuja Casa Grande e capela ainda estão de pé e muito conservadas pela Casa Maternal Mello Mattos à Rua Faro 80. O seu par era o Engenho D´El Rey, fundado em 1575, no atual Morro das Margaridas, Horto Florestal do Rio de Janeiro. Uma construção em ruínas e necessitando de intervenção de conservação, ainda se encontra no local, testemunhando a ocupação mais remota do lugar.
A construção possui características estéticas e arquitetônicas inquestionáveis tanto de sua originalidade quanto da pertença temporal ao século XVI. Erguida com a tecnologia de Taipa de Pilão, reconhecidamente uma técnica arquitetônica dos engenhos e outras construções nobres do século XVI (LEMOS, 2008) e com decoração ornamental que não deixa dúvida quanto a sua condição abastada, o monumento em ruína revela que o lugar foi escolhido para a plantação de cana de açúcar: em terras férteis de encontros fluviais e visibilidade estratégica, conforme se buscava na época construir as Casas Grandes dos engenhos em colinas para a tudo observar e controlar. Do alto do Morro das margaridas é possível observar a Lagoa Rodrigo de Freitas, o mar de Ipanema, o Morro Dois Irmãos e o Morro dos Cabritos (ambos lugares quilombolas), o Corcovado, além da própria região do Horto. Conforme estudos inquestionáveis do ponto de vista histórico, como o clássico Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1980, 20ª ed.), sabemos que as construções de engenhos de açúcar do século XVI possuíam a planta arquitetônica em formato de “U”, com pátio interno, escadaria de acesso (em sendo colinas), e senzala em edícula (uma construção paralela, como um apêndice à Casa Grande).
Em 1596 o Engenho D´El Rey foi vendido ao vereador Diogo Amorim Soares que, em 1609, voltou para Portugal, transferindo a posse do Engenho, por requerimento deferido pela Câmara dos vereadores, a Sebastião Fagundes Varela, como dote por seu casamento com a filha do então governador. Assim permaneceram, as terras e a Lagoa salgada da região, no nome de Fagundes Varela até que, em 1660, Rodrigo de Freitas de Mello e Castro herdou do sogro Fagundes Varela o engenho, que foi conservado em poder de sua família por 150 anos. Desde então, as águas salgadas em formato de coração passaram a se chamar Lagoa Rodrigo de Freitas. Diogo Amorim transformou o Engenho D´El Rey num grande latifúndio, incorporando as terras vizinhas e mudou o nome do empreendimento para Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, tendo sido uma das maiores propriedades da Freguesia da Gávea e cuja sede é o atual Centro de Visitantes do IJBRJ, construída junto à Capela Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, situada na atual EMBRAPA e, no século XIX transferida para a Rua Marquês de São Vicente onde até hoje se encontra (COSTA, 1950). Ao cair em desuso e depois abandono, a estrutura da Casa Grande do Engenho D´El Rey foi ocupada por quilombolas e se constituiu em um importante Mocambo (casa de negros resistentes ao sistema colonial escravista). Daí que a memória oral da população do Horto refere-se à ruína da Margarida como Senzala ou Casa Grande e Senzala. Sr. Geraldo, falecido e depoente no documentário Horto Lugar de Memórias, testemunha que seu avô residia ali desde o tempo dos escravos, identificando assim, uma relação de parentesco que remonta aos tempos e aos registros culturais quilombolas da população do Horto Florestal do Rio de Janeiro.
2. Sobre o tempo da construção da Fábrica de Pólvora e do Parque, nota-se que a Coroa Portuguesa e depois o Príncipe Regente investiram na localidade, inicialmente com o Engenho Real de açúcar e em seguida com a Fazenda dos Macacos, dada de presente à imperatriz Amélia de Leuchtenberg.
Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808 o Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa foi desapropriado para a construção de uma Fábrica de Pólvora, em 1811. Os trabalhos de instalação da fábrica de pólvora e acomodação dos dirigentes, oficiais e escravos, acarretou problemas para os ocupantes das terras, contribuintes de aluguéis ao procurador de D. Leonor. Alguns dispunham de vastas extensões, até próximas dos depósitos dos explosivos e em lugares mais apropriados para servirem de moradias para os oficiais e operários do estabelecimento. Todos, porém, eram donos de casas, lavouras e utensílios, os quais só poderiam ser entregues à Fazenda Real mediante desapropriação, devidamente indenizada.
Procurando resolver a situação, fêz baixar o Príncipe regente, o Decreto de 18 de julho de 1811, documento de real interesse para a história do bairro naquela época: “Manda desapropriar as benfeitorias da lagôa Rodrigo de Freitas, necessárias à Fábrica de Pólvora”. Achando-se estabelecidos na Lagôa Rodrigo de Freitas, não só muitos rendeiros, mas ainda alguns lavradores que só tinham obrigação de dar canna de assucar, e que, havendo cessado os engenhos de assucar, ocupam estes terrenos sem darem lucro algum à mesma fazenda ... (Costa, 1950, p. 41).
Como se percebe no trecho destacado, nas cercanias do Solar se estabeleceram chácaras e pequenos lotes de terras, e serventias como ferrarias, estrebarias, carpintarias, moradias, bem como as senzalas e sítios quilombolas nascentes ou já existentes. O Solar da Imperatriz era a sede da Fazenda dos Macacos, cujos limites territoriais correspondiam aos do antigo Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa.
Contudo havia uma diferença fundamental entre os dois momentos históricos de produção agrícola na região. Durante o cultivo da cana e os engenhos se estruturavam em Casa Grande ou principal, Senzala e poucas casas como as feitorias e etc. Enquanto no final do século XVIII e início do XIX a localidade do Horto já era ocupada por pequenos proprietários e também por posseiros mais humildes.
Durante os 13 anos de benfazeja permanência no Rio, D. João procurou incentivar a cultura das plantas úteis à economia do País, concedendo recompensas e vantagens aos que correspondiam aos seus esforços (...) D. João era assíduo visitante da Fábrica de Pólvora e do Jardim. Tendo mandado desapropriar apenas as dependencias e terras da fazenda, teria de pagar muito alto se o mesmo fizesse com as benfeitorias, as cinquenta e pouca chácaras, sítios e casas que havia na limitação da velha propriedade. Foi, porém, comprando algumas chácaras por perto da Fábrica. A primeira a ser incorporada à Fazenda Real foi a vizinha chácara da Cabeça, antiga sede do engenho de Martim de Sá, em cuja capela se venerava a milagrosa santa invocada pelos que sofriam de dores de cabeça (Costa, 1950, p. 41).
Esse documento de Cássio Costa sobre a Freguesia da Gávea, bem como os mapas encontrados nos livros Do cosmógrafo ao satélite: mapas da cidade do Rio de Janeiro e Geografia histórica do Rio de Janeiro, foram fundamentais para a nossa compreensão da realidade do Horto à luz das disputas fundiárias que marcam a região até (e principalmente) os dias atuais. Essas peças revelam que a região é historicamente povoada desde 1575 e que abrigou a confluências de poderes coloniais e imperiais: senhores de engenho e fazendeiros ligados diretamente à Metrópole e depois à Corte, mas também pequenos proprietários burgueses e posseiros pobres que se instalavam paulatinamente no bairro criando a diversidade de interesses e poderes que assistimos até hoje no local. Retomaremos adiante essa importante questão que está na constituição da população tradicional do Horto Florestal do Rio de Janeiro.
A Fazenda dos Macacos produzia café desde 1750 quando O Solar da Imperatriz foi construído para sediar a sua Casa Grande. Ao contrário do que se tinha por hábito nas construções das Casas Grandes dos engenhos de açúcar, a produção cafeeira já se iniciou contando com outro tipo de padrão arquitetônico, contendo varandões e uma característica marcante: a senzala passou a ocupar os porões dessas construções.
Destacamos, ainda, um marco importante nesse período temporal: em 1875 o Horto Florestal do Rio de Janeiro passa a constar oficialmente no mapa da cidade do Rio de Janeiro, pertencendo à Freguesia da Gávea. Sobre esse tempo anterior ao período republicano, bem como as fases mais pretéritas, não encontramos documentos pertencentes às famílias que hoje habitam o Horto, no sentido de comprovar as relações de parentesco com os atuais habitantes. No entanto, há evidências históricas aqui levantadas e comprovadas em mapas e referências bibliográficas respeitáveis no meio acadêmico quanto ao tema do quilombismo histórico no Brasil, de que a região do Horto desenvolveu fortemente a cultura da resistência afro-brasileira.
3. Já no período entre 1889 e 1892, no contexto da constituição da República do Brasil, momento em que o Estado tinha como projeto político a expansão do trabalho assalariado, assentavam-se no Horto (Morro das Margaridas e Grotão) as primeiras famílias de que se têm documentos que comprovam a posse histórica das terras da União desde aquele tempo e cujos descendentes seguem vivendo no Horto. As relações de parentesco num mesmo território não deixam dúvidas da historicidade dessa população tradicional. Isso dito, importa registrar que os moradores atuais descendem diretamente de antigos moradores nascidos no Horto desde 1889. Tais são os casos das famílias de Manoel Alves de Sá e de Cypriano Alves de Souza (habitantes da Pacheco Leão).
4. Na primeira década do século XX, o Estado brasileiro tinha como projeto para essa área do Horto a implantação de importantes fábricas de tecido, motores iniciais do processo de industrialização capitalista do país. Neste momento, vários imigrantes italianos, bem como os ex-escravos que já habitavam o Horto vieram trabalhar nas fábricas e se apresentam aqui alguns documentos de famílias que descendem diretamente desses trabalhadores. Tal é o caso das famílias Macedo (hoje habitante do Caxinguelê), Carcerere (hoje habitantes dos arredores do Solar da Imperatriz, Aguiar Dias (hoje habitantes da Pacheco Leão), dentre muitas outras.
5. Em 1960 é claro o plano de urbanização para a região por parte do Governo Federal que desenvolve a planta do assentamento do Caxinguelê e convida os trabalhadores do Jardim Botânico a residirem mais perto de seu local de trabalho. É quando o Estado inaugura, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek, a Escola Municipal Julia Kubitschek e outras instituições de ensino para atender com serviços públicos de educação a população historicamente constituída.
No final dos anos 1960, durante o governo Carlos Lacerda no estado da Guanabara, houve o projeto de se construir no Horto um cemitério, contra o que a população resistiu e conseguiu afastar a ideia. No entanto, quando da política de remoções que o Rio de Janeiro sofreu no governo Lacerda, muitos removidos das favelas que margeavam a Lagoa, como a Praia do Pinto, foram reassentados no Conjunto Habitacional Dona Castorina, conhecido no Horto como Balança. Esses projetos do Estado revelam que nos anos 1960 o Horto era considerado uma região distante, pobre e pouco valorizada na cidade, uma vez que poderia ter sido um cemitério e foi de fato o lugar escolhido para abrigar os favelados removidos da política lacerdista.
Nos anos 1970 o Estado promoveu a infra-estruturação da cidade (e mesmo do país) no Horto: construiu o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), a subestação da Light e o Clube da Cedae, cujo reservatório de águas já se encontrava no Horto desde 1877.
Na década de 1980 a Rede Globo se instalou no Horto e o Alto Jardim Botânico começou a ser povoado pela alta burguesia, um público bastante diferente dos tradicionais trabalhadores que ocupam historicamente a região. Diretores da Globo, banqueiros importantes e capitalistas reconhecidos se mudaram para as proximidades do Horto, na rua Sara Vilela e cercanias. É também nessa época que se desbravam as matas da Gávea para a construção do condomínio Canto e Mello, igualmente habitado pelas elites.
Desde então, iniciaram-se as ações de reintegração de posse contra moradores do Horto. Para defender seus direitos, a população tradicional criou a AMAHOR para se representar.
Nos anos 1990, tempos de neoliberalismo, capitalismo especulativo e privatizações da res pública, se acirraram as disputas fundiárias e ideológicas entre os tradicionais habitantes do Horto e seus vizinhos milionários.
Na década de 2000 criou-se o IJBRJ, e os moradores do Alto Jardim Botânico passaram a compor a associação de amigos desta instituição e também do bairro (AMAJB). Iniciaram-se os projetos de remoção da comunidade bicentenária. Acirrou-se a luta de classes na região e a Globo iniciou a veiculação de uma forte campanha de desqualificação dos moradores tradicionais. Os projetos de cidade-maravilha e parque-maravilha não comportam os pobres e históricos cidadãos. E o Horto perdeu a sua paz.
Voltando à primeira desconstrução do discurso hegemônico a que nos propusemos, aquela que diz respeito às fronteiras entre IPJBRJ e comunidade do Horto, é importante que se rememorem os dados. Até os anos 1950 havia uma fronteira espessa e pantanosa entre o parque e a comunidade. No final dessa década, uma tempestade arrancou o bambuzal que fazia a divisa natural.
Nessa época, após o temporal, o Jardim Botânico permitiu que os trabalhadores do parque e moradores do Horto construíssem casas mais perto do trabalho e muitos residentes da região do entorno do Solar da Imperatriz e do chamado Hortão se mudaram para a localidade adjacente, batizada de Caxinguelê. Para atender esses moradores do Horto, foi erguida a Escola Municipal Julia Kubitschek, fundada pelo presidente Juscelino Kubitschek e que era um dos marcos da fronteira. Do outro lado, no sopé da colina por onde passa o Aqueduto histórico do Horto (construído por escravos no século XVIII para o abastecimento de água na região da Lagoa Rodrigo de Freitas) havia um portão que delimitava os dois espaços, hoje conflitantes.
Foi somente nos anos 1990 que o Jardim Botânico se tornou Instituto de Pesquisa e começou a expandir o seu arboreto, justamente em direção à comunidade. Se hoje algumas casas do Caxinguelê estão “dentro do parque” como se afirma no discurso hegemônico, elas assim estão porque foi o IPJBRJ que avançou e as incorporou dentro dos novos limites de seus portões. Portanto, é imperativo desmentir que os moradores do Horto são invasores.
Em 1995, o IPJBRJ obteve a posse do Solar da Imperatriz para nele fundar a Escola Nacional de Botânica. Dali em diante foi fácil para o discurso hegemônico argumentar que a região situada entre o monumento e o arboreto era toda território do Instituto. Mas esse perímetro falacioso que querem oficializar nunca foi da forma como se está propondo e é nessas horas que a História serve para não deixar se repetir crimes contra a humanidade. Retirar os moradores históricos e apagar vestígios históricos e lugares de memória de uma população afrodescendente a fim de justificar um abuso de poder é algo que não devemos deixar acontecer, sobretudo por meio de um governo que se pretende democrático e dos trabalhadores. Nessa linha reta que o IPJBRJ quer traçar (e vem traçando com abertura de estradas no Horto, à beira do rio) há centenas de casas, famílias e memórias que não podem ser suprimidas pela necessidade da pesquisa botânica e da expansão do que quer que seja. Não sem antes se considerar as vidas e os direitos humanos instalados ali, historicamente. Ora, que Estado é esse que se coopta por interesses dominantes e não aplica suas próprias políticas públicas quando se vê ameaçado pelo poder do capital?
Em 1998 se iniciou uma reforma de restauração do Solar da Imperatriz para inaugurar ali a Escola Nacional de Botânica, ligada ao IPJBRJ. Concluída em 2001, a obra modificou as características da construção, sobretudo no que diz respeito à Senzala, localizada no porão da Casa Grande, como era típico das construções de Fazenda dos séculos XVIII e XIX. Diferentemente do modelo vigente no século XVI, em que a senzala costumava ficar na edícula da construção principal, em 1875, já era costume construir o lugar dos escravos abaixo da Casa Grande, entre outros motivos, dizem, para aquecer os senhores no inverno com o calor do corpo dos negros que se amontoavam nos porões (LEMOS, 2006).
Transformada em cafeteria, desde essa obra concluída em 2001 e executada pela João Fortes Engenharia, a Senzala que continha inúmeras relíquias do cativeiro e, portanto, era um lugar de memória da cultura negra e da história do escravismo colonial na cidade do Rio de Janeiro, perdeu as características da época e as relíquias que ali se encontravam. O mais impressionante dessa intervenção é que, novamente, o IPHAN autorizou a reforma, levada a cabo pelo IPJBRJ. Ainda mais grave é que hoje a cafeteria nem ao menos funciona, o Solar foi cercado por grades, impedindo o livre acesso dos moradores do Horto e do público em geral, sendo um monumento público da cidade do Rio de Janeiro e da história colonial brasileira, hoje um território privativo do IPJBRJ. No porão, onde se situava a senzala, observam-se restos do material usado na obra, depositados sem critério e organização no lugar de memória, o que levou o Museu do Horto, a buscar apoio da Fundação Cultural Palmares para tentar inventariar ao menos essa memória, a fim de não perder a sua importante contribuição na história da população negra da cidade. Seria de fundamental importância para a história da cidade que o IPHAN e as demais instituições responsáveis, revissem esta polêmica questão.
A estrada feita pelo IPJBRJ estendeu os limites do parque até o Clube Caxinguelê, na fronteira junto à Gávea e à Escola Municipal Julia Kubitschek -tendo o IPJBRJ incorporado um importante lugar de memória da comunidade do Horto como patrimônio histórico do Jardim Botânico: o Aqueduto da Levada. No outro extremo das fronteiras, mais para cima, perto da Estrada Dona Castorina a incorporação do Solar da Imperatriz pelo instituto igualmente busca reivindicar um perímetro que passou a existir somente em 2013. Os novos portões aprisionaram os moradores tradicionais dentro dos novos limites territoriais do IPJBRJ, os quais se impuseram antes mesmo da decisão oficial do Governo e acabaram por “legitimar” frente à opinião pública e ao discurso hegemônico a falaciosa condição dos moradores tradicionais como “invasores do parque”, conforme pode ser notado nas matérias do jornal O Globo que buscam criminalizar os cidadãos históricos do Horto.
A essa construção tendenciosa de perímetro do parque nós nos opomos categoricamente por entender que é arbitrário e perverso o mecanismo de apropriação do território da União Federal, cujo estatuto constitucional visa garantir a função social das terras. Desse modo, está sendo desrespeitado o direito constitucional à moradia tradicional, bem como foram desrespeitados os cidadãos históricos do Horto que exigem uma retratação, inclusive por danos morais, devido à acirrada campanha midiática por desqualificá-los como criminosos invasores, atributos que nunca procederam e deturpam a real história fundiária localizada entre o IPJBRJ e sua associação de amigos e a AMAHOR representante dos moradores tradicionais do Horto. Ademais, questionamos o apoio do IPHAN ao IPJBRJ na intervenção paisagística realizada no local e quanto aos inadequados procedimentos de conservação do Aqueduto. Não houve restauração, mas simplesmente o IPJBRJ emassou e pintou de branco. Pá de cal na história da comunidade tradicional, pá de cal na memória negra da região.
Autora: Laura Olivieri