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A ocupação da área do Horto Florestal, em que uma parcela é de titularidade da União Federal, e outra do próprio Instituto de Pesquisa Jardim Botânico (IPJB), data do ano de 1808, quando D. João VI desapropriou o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa para a construção de uma fábrica de pólvora. Em 1811, foram erguidas vilas para a instalação dos trabalhadores da fábrica, em virtude de o local ser considerado de difícil acesso. Com a transferência da fábrica para a serra de Petrópolis, a área foi desmembrada e alienada, sendo muitas casas de antigos funcionários cedidas, nos séculos XIX e XX, a funcionários do IPJB.
Assim, gerações de famílias de funcionários e descendentes de funcionários da antiga fábrica e do IPJB construíram uma comunidade nos arredores do parque, com autorização (formal e informal) das diversas administrações do Jardim Botânico. Durante mais de um século, os moradores do Horto vêm cuidando desta localidade como extensão de suas vidas, impedindo, inclusive, a implantação de projetos de grande impacto socioambiental. Hoje, a área é ocupada por 621 famílias de baixa renda, formada, em sua maior parte, por pessoas idosas, que possuem inclusive projeto de proteção ao ambiente e a história da região.
Na década de 1980 a União Federal, proprietária da área, distribuiu 215 ações de reintegração de posse em face de moradores do Horto. As ações transitaram em julgado, em sua maioria, no final da década de 1990, com todos os pedidos julgados procedentes.
As decisões não foram executadas pela União, devido a uma alteração no contexto jurídico – político, sobretudo com a promulgação da CRFB/88, Estatuto da Cidade, Código Civil de 2002, Lei n. 11481/2007 e Lei n. 11977/2009, que consagram o direito fundamental à moradia, através de instrumentos de legitimação de posse que outorgam funcionalidade a propriedade pública e privada.
Diante desse novo contexto e com objetivo de instaurar um processo de diálogo com a comunidade, a União realizou pedido de suspensão das 215 ações de reintegração, e através de sua Secretaria de Patrimônio no Rio de Janeiro (SPU/RJ), celebrou convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para desenvolvimento de um plano de regularização fundiária e urbanística para todos os moradores da comunidade do Horto. O Plano foi elaborado durante três anos e finalizado no segundo semestre de 2012. A proposta permitia uma adequada inclusão socioterritorial, com ordenamento espacial, delimitação de território e proteção das áreas necessárias às funções institucionais do IPJB.
De acordo com o projeto, a cessão da área aos moradores seria realizada através da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), incorporando os requisitos da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM). Cabe ressaltar que seriam incluídas cláusulas resolutórias, visando impedir o adensamento, bem como o uso inadequado do solo, tendo em vista que se trata de uma área de extrema importância ambiental e cultural. A inobservância destas cláusulas provocaria o cancelamento do título.
Contudo, desconsiderando o fato das famílias estarem consolidadas há mais de dois séculos na área, e a vontade da União em legitimar a posse dos moradores, a comunidade está prestes a sofrer uma violência sem precedentes. A elite local, moradora de condomínios de luxo e mansões da região, tem empreendido uma verdadeira cruzada contra os moradores do Horto, com o auxílio de diversas administrações do IPJB. Estes, sob a falsa alegação de defesa do meio ambiente, conseguiram paralisar o processo de regularização fundiária que estava sendo promovido pela SPU/RJ.
É dolorosa a constatação da comunidade, que em sua maioria vive no local há pelo menos cinco gerações, quando observa a presença, no mesmo espaço territorial, do luxuoso condomínio Canto e Mello, que não sofre qualquer contestação quanto a sua permanência, em latente tratamento desigual entre ricos e pobres. O tratamento desigual para situações fundiárias e ambientais semelhantes desvela o racismo ambiental contra os usos tradicionais e coletivos da Comunidade do Horto.
Durante a elaboração do plano de regularização, os atores públicos envolvidos estabeleceram um amplo diálogo com comunidade, que permaneceu durante os três anos de desenvolvimento do projeto. O plano apresentado respeitou as áreas necessárias para que o IPJB realizasse suas atividades e concluiu pela permanência da comunidade do Horto, sendo necessário o reassentamento de apenas pequena parte dos moradores - cerca de 10% - no próprio bairro.
Diante da conclusão do projeto e a possibilidade concreta das moradias serem legitimadas nesse espaço urbano, a Associação de Moradores do Jardim Botânico (AMAJB), formada pelos moradores que compõem a elite do bairro Jardim Botânico, realizaram denúncia no Tribunal de Contas da União (TCU), alegando o mau uso do bem público por parte da SPU/RJ.
O TCU proferiu decisão no Relatório n° TC 032.772/2010-6 e Acórdão n° 2380/2012 – TCU – Plenário, e, extrapolando sua competência, determinou que a SPU/RJ não titulasse os moradores do Horto, bem como não implementasse o projeto de regularização fundiária de interesse social desenvolvido. Além disso, determinou a formação de uma comissão interministerial, composta por representantes do Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Planejamento, IPHAN, SPU, AGU e o próprio IPJB, para delimitação do perímetro de interesse deste Instituto de Pesquisa. Segundo o TCU, após a delimitação dessa área, todas as moradias que estiverem inseridas nesse limite devem ser retiradas.
No dia 07 de maio, de 2013, a comissão interministerial apresentou seu parecer final, indicando que o IPJB tem interesse em avançar o seu perímetro em 80% da comunidade, atingindo 520 famílias, ou seja, mais de quatro mil pessoas, em sua maioria, hipervulneráveis, idosos, crianças, e pessoas de baixa renda. A comissão não apresentou justificativa sobre o novo perímetro, nem mesmo a razão de ter desqualificado os termos do projeto elaborado pela SPU/RJ e UFRJ. Ressalta-se que não foi apresentada qualquer alternativa de moradia, caso a remoção realmente venha a ocorrer.
O IPJB se tornou formalmente proprietário da área em que reside a comunidade, como determinou a decisão do TCU, em 03 de novembro de 2016.
É importante destacar que o TCU não determinou a saída dos moradores. No intuito de outorgar uma solução definitiva para o conflito, o Tribunal determinou que o Governo Federal, por meio da comissão interministerial, indicasse a área de interesse do IPJB. Após a fixação desse perímetro, ocorrido em 2013, as famílias que estivessem no interior dessa área e que já são rés nas ações de reintegração de posse propostas na década de 1980, a procuradoria do IPJB deveria executar tais sentenças. Com relação as famílias que estivessem dentro desse perímetro, mas que não são rés em ações de reintegração de posse, o IPJB deveria propor novas ações.
A propositura dessas novas ações ocorreu em 2018. Atualmente estão tramitando uma média de 40 ações de reintegração de posse, já propostas pela procuradoria do IPJB, em razão da doação da área, além das 215 ações, já transitadas em julgado, propostas na década de 1980.
A Seção Judiciária Federal do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Centro de Conciliação de Processos Ambientais Complexos do TRF da 2ª Região (CEJUSC Ambiental), em dezembro de 2022, instaurou uma mesa de mediação, entre os moradores do Horto, representados por sua associação de moradores (AMAHOR), e a procuradoria do IPJB, com objetivo de buscar uma solução consensual para o conflito. De maneira injustificada, na terceira reunião realizada, o IPJB se retirou da conciliação.
Diante da complexidade do tema e da inequívoca violação de direito humanos e do próprio direito à moradia dos ocupantes da área, O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, instaurou o Inquérito Civil nº 1.30.001.002377/2021-31, que tem como objeto a questão fundiária da comunidade do Horto Florestal.
No âmbito do referido inquérito, o MPF tem realizado reuniões junto a diversos atores sociais e institucionais, que tem relevância e aderência na busca por uma solução consensual para o conflito em análise. Nessa linha, em 21 de março de 2023 foi realizada uma reunião, convocada pela Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça, com a participação inclusive da SPU, com a finalidade de otimizar as medidas a serem adotadas na solução da questão fundiária do Horto.
Nesse contexto, importante destacar que os métodos de solução consensual de conflitos podem ser promovidos a qualquer tempo e com eles converge o interesse público, como disciplinado no próprio Código de Processo Civil. Por isso, o diálogo que vem sendo realizado pelo MPF, no âmbito da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, é essencial para uma solução efetiva para o caso, a partir da convergência dos diversos bens jurídicos envolvidos.
Nessa linha, em razão da provocação realizada pelo MPF/PRDC, a Secretaria Geral da Presidência da República, por meio da Portaria SG/PR Nº 153, de 18 de maio de 2023, instituiu Grupo de Trabalho Técnico GTT, a ser coordenado pela Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, com a finalidade de analisar e propor ações voltadas à resolução das controvérsias relacionadas ao perímetro do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro - JBRJ.
Diante dos fatos brevemente apresentados é latente a violência que a comunidade do Horto vem sofrendo e está prestes a sofrer, com a possibilidade concreta de uma remoção arbitrária. Diversos órgãos técnicos já se posicionaram no sentido de que é possível a permanência dos moradores no local, mesmo que com algumas adequações, sendo, portanto, viável o diálogo e a convergência de todos os bens jurídicos em disputa.
Assim, os moradores da comunidade do Horto pretendem que o Governo Federal, especialmente o Ministério do Meio Ambiente, realize a revisão do perímetro de interesse do IPJB, indicado pela comissão interministerial em 2013, em razão do novo contexto jurídico-político vigente em 2023. Para tanto, pretende a realização de diálogo com todos os atores envolvidos, visando a suspensão das ações de reintegração de posse em andamento, para que de maneira efetiva seja definida uma solução consensual para o conflito fundiário do Horto, evitando a remoção forçada de mais de quatro mil pessoas.
Autores: Paula Máximo e Rafael Mendonça